segunda-feira, fevereiro 28, 2005

refém das horas - I


Ouvi um sino. As badaladas retumbaram pela mente e me transportaram à infância quando as horas, os dias e as mortes eram anunciadas por diferentes sons como trovões, presságios de tempestades. Alusões atemporais.
O pesar das horas me iludia quanto ao passar do tempo. Depois do almoço e dos afazeres da casa, tudo dormia, até a rua, onde só restavam cães e poucos pássaros. Era o dia em dois atos, dividido pelo relaxar vespertino no mormaço do sol a pino.

domingo, fevereiro 27, 2005

refém das horas - II


No hiato da tarde, quando o dobrar do sino ainda repicava, a mesma sensação me apossou. Por uma fresta da janela um pequeno pássaro penetrou minha gaiola. A princípio ele parou no parapeito e se esgueirou, talvez para escapulir do calor ou simplesmente para caçoar de minha iniqüidade.

sábado, fevereiro 26, 2005

refém das horas - III


Por instantes ficamos os dois a olhar-nos mutuamente. Ele, girando sua cabeça de lado a lado voou até a cômoda e experimentou alguns farelos de pão que restaram após a cotidiana sopa, assim como as migalhas de memória que volta e meia saboreio.
Sem se fazer de rogado, num leve bater de asas, saltou até o criado-mudo, a um braço de distância. Era como se minha infância tivesse se dobrado no tempo e viesse me oferecer um regalo. De penugem amarela, parda e marrom, tendo algumas penas negras na sua pequena cauda, ele se exibia.

sexta-feira, fevereiro 25, 2005

refém das horas - IV


Lembrei das caminhadas pelo campo até a escola, recordei de Elvira admirando o passaredo nos finais de tarde no pomar, revivi os pardais nos cinamomos - onde estão os cinamomos? Vi Marília correndo atrás dos pombos na praça. Senti Eduardo soltar minha mão para ver o viveiro de aves no zôo. Entendi Mário Quintana... "eles passarão, eu passarinho"...

quinta-feira, fevereiro 24, 2005

refém das horas - V


Ainda estava flutuando no álbum de recordações que meu visitante trouxera, quando a porta se abriu, surgindo uma menina, que assustou meu hóspede. Aturdido, bateu asas e tentou sair pela vidraça. A garota gritou apavorada e saiu correndo pela casa, enquanto o animalzinho agonizava sobre a poltrona ao lado da janela.

quarta-feira, fevereiro 23, 2005

refém das horas - VI


Com o ímpeto que busquei na energia de uma infância remota, consegui erguer-me. Apoiando-me na cama, cheguei até ele, que batia uma de suas asas amedrontado. Peguei-o entre as mãos e deixei-me cair sentado na poltrona, quando Marília, um homem, talvez Eduardo, trazendo a menina pela mão entraram no quarto. Eu, vitorioso, acariciava a cabeça do bichinho e sorria como se tivesse sido a primeira vez que segurasse um pássaro. Eles se puseram ao meu redor, mais surpresos pela minha audácia do que pelo amontoado de plumas que se acomodava entre minhas mãos.

terça-feira, fevereiro 22, 2005

refém das horas - VII


Numa fração de segundos entendi o elo entre mim e essas quatro gerações. Ficamos ali por algum tempo. Provavelmente pensaram que eu, como que por magia voara até ali e se puseram a falar, sem que eu compreendesse patavinas. Seria mais fácil compreender o gorjeio do pássaro do que aquelas palavras desconexas. Deve ter sido o melhor dia em família que tive desde que..., desde... Não sei.
Cada página que é escrita em minha vida substitui uma anterior que é rasgada e solta ao vento. Naquele momento, o sino batia distante novamente e por algum motivo pude reconhecer que eu estava em família. Havia carinho no ar. Havia Elvira.