quarta-feira, junho 30, 2004

avesso do espelho - I


Hoje reparei no espelho e não acreditei no que vi. Não eram minhas aquelas mãos, nem minha face poderia estar assim, vincada, caída, manchada, murcha e triste. Por dentro disso, que não era eu, me vi perdido e preso ao mirar meus olhos. Lá dentro, no fundo, estava eu prisioneiro do tempo, refém das horas e senhor de nada.

terça-feira, junho 29, 2004

avesso do espelho - II


Sempre foi assim. Por dentro havia um fogo que vibrava e deixava torpe de meus próprios pensamentos, mas por fora uma pessoa sóbria e comedida. Uma explosão contida numa batisfera selada. Carreguei a vida toda uma chama que transcendia meus movimentos e queimava meus dedos, quando escrevia minhas crônicas e meus poemas. Olho minha mão marcada por manchas senis e me pergunto quando foi que tudo isso aconteceu. Não tenho resposta. Meu corpo não soube acompanhar minha juventude e agora já é um estorvo.

segunda-feira, junho 28, 2004

avesso do espelho - III


Já faz muito tempo que parei de escrever, antes mesmo que alguém pudesse ler. Até nisso fui contido e soube esconder muito bem cada palavra que germinou no papel por onde passei a caneta. Guardei bem, muito bem esse segredo. Quando Marília vendeu a casa de praia, não tive mais como pedir-lhe que olhasse no sótão o meu tesouro. Mas não faz mal. Escrevi para mim e fui feliz. Reconstruí momentos e recriei mundos em folhas brancas, que agora amareladas ou roídas por insetos vão acabar-se muito depois de mim, sem assinaturas e sem respostas.

domingo, junho 27, 2004

avesso do espelho - IV


Olho novamente o espelho e tenho vontade de rir. Por dentro dou gargalhadas, mas o pobre velho já não tem mais tempo para largos gestos e desvia o olhar de mim.
Tenho que começar a voltar para meu quarto. Logo o sol se irá e não posso perder mais esse espetáculo. Mais um dia vitorioso em que derroto o sol. Ele se vai e eu fico a zombar de seu mergulho no horizonte.