domingo, outubro 31, 2004

jardim suspenso - I


Nesse lugar do jardim, aquela mulher nunca havia me deixado... se bem que tenho minhas dúvidas do conceito dessa negativa.
Na rua, as pessoas passam apressadas, indo e voltando sabe lá para onde. Estudam, trabalham, se divertem, mas estão sempre atrasadas. Eu teria tanto a falar sobre tempo!
Minha vaga memória me traz uma nostalgia de não sei o quê. Não lembro no que trabalhei, o que construí, com quem vivi... filhos, netos, mulheres, amigos, pai, mãe, irmãos. Nada. As fotos lá no meu quarto deveriam me ajudar, mas estão todos sorrindo e não consigo destinguir idades
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sábado, outubro 30, 2004

jardim suspenso - II


Ah, os livros! Esses sim. São a tradução de momentos e estão sempre por perto para me clarear o caminho. Não me recordo de nenhum em especial, mas sei que eles sempre fizeram parte de mim. Posso até ter escrito alguns, posso ter me guiado por outros, posso até ter sido um livreiro, bibliotecário ou editor. O que importa agora? Nos livros encontro pensamentos de outras pessoas que me auxiliam a manter uma seqüência lógica de idéias. São neurônios arquivados e os alugo de quando em vez.

sexta-feira, outubro 29, 2004

jardim suspenso - III


Por quanto tempo ela me deixará aqui?... O sol é bom, mas o vento é frio. Não sei quando comecei a sentir frio, mas ultimamente parece que vivo numa geladeira. Qualquer ar que me bata, parece ter vindo de algum pólo. Outros tempos, espirraria, mas acho que gastei todo o estoque. Só sinto as juntas doloridas e endurecidas. A decadência de um corpo aprisiona meus gestos mas não cala meu medo de morrer de frio, esquecido por uma mulher que não sei quem é.

quinta-feira, outubro 28, 2004

jardim suspenso - IV


Por que ela faz tudo isso por mim? Se eu lembrar-me, vou procurá-la naquelas fotos do quarto. Ela fala de coisas que não entendo e em voz alta, como se eu fosse surdo. Pobres tímpanos: restaram para sofrer a ausência de minhas cordas vocais que não são mais capazes de dizer um sonoro cale a boca. Por outro lado, ela é afável e parece gostar de mim. Que interesse poderia ter essa senhora de meia idade?

quarta-feira, outubro 27, 2004

jardim suspenso - V


Lá vem ela, sorrindo. Vou sorrir para ela também. Ela fica séria. Vou ficar também. Não adianta gritar nada, minha cara, não entendo o que fala, são palavras sem propósito como uma ladainha grega. Por favor, leve-me para dentro. Não sei se ela entendeu o que sinto, mas parece que vai me levar daqui. Que maravilha essas cadeiras com rodas! Devo ser uma pessoa importante, afinal sou o único do jardim com uma dessas.