terça-feira, maio 31, 2005

tempos de ventania - I


Desde o episódio do pássaro ferido, constantemente Eduardo me visitava, como se quisesse resgatar algo de seu próprio passado. Ele me afagava a mão e me incentivava a alguns passos pelo quarto, ou circulava comigo na cadeira de rodas pelo quintal do prédio.
No início, falava muito, ao que eu respondia com olhares, gestos possíveis, sem entender nada daquela língua estranha. Passados alguns dias, resignou-se e passou a mostrar-me fotografias, livros e até filmes antigos, velhos inclusive para mim. Admirei-me pelo esforço de convívio que ele me proporcionou e das recordações que recuperei, sem que ele soubesse. Marília a tudo observava, orgulhosa do empenho de seu filho. Compartilhamos assim momentos intensos, como se fossem os últimos dias de férias.

segunda-feira, maio 30, 2005

tempos de ventania - II


Porém hoje, o dia não nasceu. De manhã, quando Marília entrou no quarto e se aproximou, reparei que a noite se estendeu só para mim. Meus olhos, que já vinham fracos, recusaram-se a abrir a janela de minha alma. Noite, breu, escuridão. Se minha boca já calara-se há muito, se meus ouvidos denunciavam sons ininteligíveis, agora meus olhos eram dois sóis que se puseram, sem luar, sem vela, sem aviso.

domingo, maio 29, 2005

tempos de ventania - III


Quis então movimentar meu braço para indicar à Marília o que estava acontecendo e constatei que também meus gestos já não obedeciam a meus desejos.
Como num delírio, um documentário, minha mente acelerou-se e percebi a profusão de imagens que vinham à mente, sem cronologia, sem associações lógicas. Infância, janela, Paris, cachorro, papai, trabalho, livros, praia, escola, Elvira, sapato, neve, igreja, navio, sexo, caramanchão, cebola, pessoas, colibri, óculos, Marília, sol, cama, rio. Como que propositadamente embaralhadas, a abundância de figuras se misturava a sons desconexos, como um velho filme dublado, onde as vozes não correspondem aos movimentos dos lábios. Me apego à única constância nisso tudo, o aroma de madressilva, doce, suave, intenso, enebriando a tudo, feito ventania. Era a presença de Elvira. Sim, sempre quando eu mais precisava.

sábado, maio 28, 2005

tempos de ventania - IV


Os ruídos foram se apagando, como fading de uma música. As dores que há tanto tempo me foram um estorvo e uma companhia indesejada, foram cedendo. Senti-me leve, como se flutuasse. As cenas foram desacelerando, até tornarem-se uma suave neblina, de onde a silhueta de Elvira foi se formando, a princípio translúcida com cristal até definir-se em contornos gentis, sempre serena e iluminada, como se o sol brotasse de sua forma etérea para me conduzir.

sexta-feira, maio 27, 2005

tempos de ventania - V


No calor da mão de Marília que me ampara, encontro o oposto de todas as lástimas... Percebo que o sol nunca se põe. Na ilusão de todos os fins que transcorri, cada pôr de sol era uma passagem, cada dia que nascia era uma vida que terminava, cada fim de tarde poderia ser um começo... Alheio a passagem do tempo, levitei além do sol reconquistando as perdas ou desapegando-me daquilo que um dia pensei ter sido meu.