sábado, fevereiro 28, 2004

raio de sol - I


Virgínia está atrás do poço! Um, dois, três, te achei! Não adianta correr agora! Zeca, sai de trás da árvore! Agora é tua vez! Vem logo, conta até vinte que eu tenho que ir no mato mijar!
Ihhh! Estou todo molhado... Virgínia, Zeca! O que eu estou fazendo aqui nesta cama? O dia já está surgindo e este cheiro é insuportável. Será que Marília vem me ajudar? Melhor tocar a campainha.

sexta-feira, fevereiro 27, 2004

raio de sol - II


Desculpe, filha, mas o Zeca demorou e eu não segurei... sim, estava sonhando de novo com meus irmãos...
Filha, tenho vergonha quando isso acontece, mas prometo que vou tentar me comportar melhor. Parece que foi ontem que tu me dizias as mesmas palavras, querida. Sei que tu não me escutas, mas sei que és capaz de compreender coisas que nem mesmo eu entendo. Queria poder abrir meus braços e acolhê-la num abraço que me mata de saudades. No entanto, mal consigo chamar-te para limpar-me. E tu, com teu sorriso de sempre...

quinta-feira, fevereiro 26, 2004

raio de sol - III


Isto, abra a janela, deixa esse frio da manhã entrar. Deixa arejar o quarto como se fosse minha mente. Sei que nem sempre me lembro de muitas coisas, mas teu carinho me faz lembrar das tardes ensolaradas, à beira-mar, quando erguíamos castelos de areia e que tu eras a princesa do nosso reino. Aquela nossa foto lá na parede, perto da janela, é a minha preferida. Por isso não deixo o sol bater-lhe. Ela tem que durar mais que eu, para tu poderes um dia mostrar para os teus netos o amor que sentíamos, nas quentes tardes de verão, quando o mar, como um manto de fadas, deixava a areia brilhante e trazia consigo as conchas que enfeitavam nosso palácio.

quarta-feira, fevereiro 25, 2004

raio de sol - IV

O remédio, o banho, roupa perfumada. Todo esse carinho e esse sorriso. Quanto trabalho, filha. Queria poder dizer-te o quanto te amo, mas já disse isso tantas vezes na vida que não é mais preciso. Tu sabes. Passear? Sim, claro.
Na cadeira? Sim. Pode ser, podemos andar pelo pátio do prédio, olhar as crianças, desviar dos cães e quem sabe até mesmo encontrar o Everaldo. Não, ele morreu. Me lembro. Tua mão sobre meu ombro me conforta e acalenta. Mais um curto e longo dia. Curto pela passagem atroz do tempo e longo pelas dores constantes e os verbos trancados que insistem em sair e são detidos pelo meu corpo que já não responde aos meus mais simples comandos.

terça-feira, fevereiro 24, 2004

raio de sol - V


Vou levantar-me e sentar nesse banco. Obrigado, querida. Como podes me entender em tão pequenos gestos?
Sinto um aroma vindo do jardim. É Madressilva. Tantas outras coisas se apagaram e se misturaram em lembranças, porém o perfume de Madressilva me carrega a décadas e décadas atrás, quando sentava sob o caramanchão nas tardes quentes, para encontrar tua mãe. Não quero lembrar disso agora. Madressilva que me perdoe.

segunda-feira, fevereiro 23, 2004

raio de sol - VI


Onde vais? Vou ficar aqui? Há cães. Há crianças. É perigoso. Bolas, patinetes e essa música? Trouxe um livro? Te amo, Marília. Vou me perder entre Neruda e o mar. Entre Hemingway e o poeta. Sou o limiar de todos os versos, que se acumularam sobre mim e me transcendem para a utopia da ficção poética. Não importa mais que livro seja. Saboreio as letras, mesmo que já não me digam nada.

domingo, fevereiro 22, 2004

raio de sol - VII


Queria poder entrar num livro, andar nas vielas de Marquez, navegar com Puig, absorver a natureza e as paixões alucinantes de Goethe, ou me deitar nas redes de Jorge Amado. Tanto quis e agora posso. Já não tenho limites de tempo, estou me transpondo à matéria e transgredindo o limite da vida. Já vivi Orwell ficção e passado, rimei a imprecisão de Drummond e os personagens fétidos de João Ubaldo, esse menino travesso e profundo.

sábado, fevereiro 21, 2004

raio de sol - VIII

Mas ainda não posso... Não posso perder o sol se pondo mais uma vez, o ocaso do dia, do tempo se dobrando, confirmando as teorias que já foram hereges, tornaram-se compreensíveis e mais uma vez lunáticas.
O pensamento humano é um grande ciclo, onde as grandes verdades se mostram podres mentiras. Queria ainda ter joelhos fortes, minha língua viva e a energia juvenil para, no alto de minha experiência, bradar: Não acreditem em nada, duvidem de tudo, sem esquecer-se que nada e tudo não passam da soma das coisas que dizem ser. Paulo Freire, por que fizeste isso comigo?

sexta-feira, fevereiro 20, 2004

raio de sol - IX


Quem serei eu quando não mais me reconhecer, quando todas as minhas memórias se fundirem e não houver mais um eu único, que saiba discernir as verdades que o corpo permite e as mentiras que a alma me impõe?
Marília, volta... Marília, me leva para meu quarto... Tenho que pôr o sol para dormir... Tenho que escovar meus dentes, Marília...

quinta-feira, fevereiro 19, 2004

raio de sol - X

Essas crianças que correm tanto, se escondem, gritam, tropeçam... vou contar-lhes tudo o que vai acontecer... não, melhor ficar calado. Elas não entenderiam... Como eu, um dia também não entendi. E foi melhor assim. Cada sol que me queimou, cada gesto que me acariciou, cada pedra que me derrubou ajudou a construir meu saber e isso não tem quem explique.

quarta-feira, fevereiro 18, 2004

raio de sol - XI


Zeca, Virgínia. Já se foram. Por que me visitaram nessa manhã? Sinto falta da minha infância, dos meus amigos, dos primos, mas principalmente da algazarra com meus irmãos. Das laranjas roubadas, goiabas estouradas nas calçadas, da pipa, do campinho de futebol, da professora de matemática. Professora de matemática? Como fui me lembrar dela agora? Saia daqui, me deixe com minhas recordações, meus afetos, meus brinquedos.
Marília, que bom. Já estava cansado.