sexta-feira, dezembro 31, 2004

última estação - I


Estive fora muito tempo. Sinto ainda a cadência de um trem e o cheiro de suor das estações, como se cada qual que partisse, deixasse um mínimo grão de sal no ar, para recordar a quem chegasse a tristeza da despedida.
Nos baús de minha viagem, reviro cada dobra de camisa atrás de pistas sobre o lugar que deixei. É quando me dou por conta que jazo em vida neste corpo, neste quarto, neste estado que não escolhi.

quinta-feira, dezembro 30, 2004

última estação - II


No meu silêncio, neste mausoléu que ora me encontro, respiro o mesmo ar todos os dias, ventilado por aromas sutis que vêm da rua. A janela aberta é um convite a partir. Queria ter o dom de soltar-me das amarras físicas e estender o fio azul e assim aproximar-me dos pássaros que hora sim hora não me visitam no peitoril da vidraça, porém minha fé contida, está perdida na desilusão de um adeus que se aproxima, como uma última estação, nos trilhos de uma estrada que vago a esmo.

quarta-feira, dezembro 29, 2004

última estação - III


O que virá depois, agora já não importa, como tudo mais. Que diferença faria neste instante quando o que tenho à frente não passa de reticências?
Quando a porta do trem se abrir chegarei de surpresa e contarei a quem encontrar o que vivi. Talvez ali eu me lembre de quem deixei, dos lugares que cruzei e das saudades que não sinto.

terça-feira, dezembro 28, 2004

última estação - IV


Há reminiscências na angústia da ignorância feito melancolia em tardes mornas em frente a essa janela, muito além do anoitecer. Antes disso, o sol que mais uma vez se deita emite um som que me chama e a cada raio que emana me conduz à última estação. Percorro o horizonte em busca da fumaça desse trem e ela lá está, formando figuras aleatórias numa cor violeta triste, entre o cinza e o rosa, como as via nas nuvens branquíssimas numa infância longínqua, num campo que não sei se estive.

segunda-feira, dezembro 27, 2004

última estação - V


Estou de malas prontas, esperando não ser deixado mais uma vez, porém o sol se foi e me abandonou sem trem, nem estação, quiçá de memória.
Na escuridão, entre o estonteante verde impossível que estende do horizonte até o ébrio que se fez a noite, distiguo a lua. Redonda. Brilhante. Amarela. É o sol usando a alva face lunar para me fazer lembrar que fiquei para trás e terei que esperar o próximo vagão.

domingo, dezembro 26, 2004

última estação - VI


Tento fechar meus olhos enquanto a lua permeia o vidro e funde-se na tênue harmonia das horas que recria nesse quarto uma atmosfera de nostalgia. É como se tudo ao meu redor fosse um cenário em sépia. Resisto mais um instante a tempo de sentir a brisa da noite penetrando pela fresta e invadindo meus cansados pulmões com um perfume de dama da noite. Ah, essa flor rara, deu-me a honra de seu aroma uma vez mais. Como poderia eu ter pensando em partir naquele trem sem antes contemplar teu inebriante frescor?
Acordo. Não sei mais o que sonho, o que vivo, o que penso, o que morro.