segunda-feira, janeiro 31, 2005

morango mofado - I


Queria comer um morango vermelho e suculento. Daqueles que roubávamos Virgínia, Zeca e eu na plantação do vizinho. Queria me esgueirar pela cerca, pular o riacho e esperar o momento certo de carregar quantos morangos quisesse em meu boné. Virgínia levantaria seu vestido e guardaria mais alguns. Zeca encheria os bolsos, não importando o quanto amassados ficariam.
Queria comer um morango doce e ácido, com gosto de infância, sem cremes, sem confeitos, sem sorvete. Queria um dia a mais de infância.

domingo, janeiro 30, 2005

morango mofado - II


Marília ao meu lado contempla a janela aberta e me faz lembrar as vezes que lhe ensinei a provar frutas. Mangas, goiabas, romãs. Saborear o que a terra dá. Ainda haveria tanto a mostrar-lhe, tanta coisa que não compartilhei, ocupado que estive escrevendo, distante de seus olhos, que como jabuticabas me buscavam na janela de casa a cada fim de tarde, convidando-me a brincar.

sábado, janeiro 29, 2005

morango mofado - III


Ela tem em seus braços uma criança que de vez em quando me olha e me traz à memória a Marília de outros tempos. Minhas recordações já não me socorrem mais. Sei que essa menina tem algo de mim, de Marília, de Elvira, mas ela me tem distante no indisfarçável fosso que abisma as idades. Não brinco, mal sorrio, não falo, não tenho mais graça. Mal ela sabe que sou uma criança aprisionada, por trás dos olhos cansados de um velho.
Marília lhe canta uma música e pelo ritmo dos movimentos de seus lábios e seus gestos largos não tenho como não reconhecer as antigas canções que lhe cantei no berço e por toda sua infância. Por um momento, sinto orgulho dos meus passos e das pegadas que deixei.

sexta-feira, janeiro 28, 2005

morango mofado - IV


A menina procura meus olhos e quando os encontra se esconde no peito de Marília, que ri e canta novamente. Provavelmente está contando-lhe como aprendeu cada verso. Fecho os olhos e lembro de uma figura materna, que nem rosto mais tem, segurando minhas mãos contra sua face, num sorriso carinhoso. Sinto o cheiro de seu leite, de seu colo, de seu calor. Estará ela me esperando do outro lado? Bobagem... Que bobagem! Ela está na minha mente e daqui para frente, tudo é passado. Nada mais de morangos, vermelhos, doces, suculentos. Talvez morangos mofados, como algum livro que li há séculos.