sexta-feira, abril 30, 2004

resquícios na alma - I


Elvira, estás linda como no primeiro dia, na saída do Cine Lido. Os anos te caíram bem. Assim como estás, a me espreitar me faz, por instantes, livre dos grilhões desse corpo cansado.
Nos últimos tempos, quando te vejo através da janela a me sorrir, reacendem em mim os resquícios de um fogo que nunca se apagou, que ficou morno como ficava a lareira de nossa sala de estar, onde descobrimos as almas em nossos corpos jovens, que borbulhavam suor e faiscavam desejos ao se roçarem.

quinta-feira, abril 29, 2004

resquícios na alma - II


Quando enfim desapareces ao som de qualquer ruído que venha de fora desse quarto, deixa em mim sensações esquecidas em algum canto dessa mente aprisionada neste corpo moribundo. Queria poder te segurar mais um segundo, mas, etérea, te desfaz no ar, deixando apenas a lembrança de teu cheiro, teu corpo, teu cabelo, teus lábios, teus gestos, teu sorriso, teu brilho no olhar.

quarta-feira, abril 28, 2004

resquícios na alma - III


Nos longos anos que ficamos distantes, vivi para dentro, buscando nos livros as vidas que não vivi, as viagens que não experimentei, como drogas que nunca entorpeceram minha saudade. Ser ou não ser, não fazia mais questão. Navegar já não era preciso, era errante como um passo bêbado.
Agora, quando essa nave que me contém já não obedece meus anseios, tu surges do nada, como uma chuva de verão e me encharca de momentos perdidos no tempo, sem data e sem aviso, sem sustos ou afagos, apenas tu, repousando teus olhos sobre mim. Não vejo prelúdios nem epílogos, não vejo sinais em teu rosto, apenas uma fotografia que fugiu de minhas paredes e pôs-se de pé, a minha frente, à distância de poucos passos... uma eternidade.

terça-feira, abril 27, 2004

resquícios na alma - IV


Sei que tu não estás aí. Sou eu te projetando de dentro prá fora; sou eu mesmo zombando de minha iniquidade, indolente e carrasco de minha própria demência. Se é assim, aproveitarei o fugaz momento e te terei nua...
Não, não te vás, Elvira. Não agora! Essa mulher que entra e invade meus domínios é apenas uma simpática senhora que não sei bem quem seja. Ela entra sem ser chamada, me entope de medicamentos, ajeita meu travesseiro, afaga os ralos cabelos que me restam e sorri como se estivesse agradando. Juro que não lhe dou confiança, portanto voltes e me acompanhes nesse devaneio.

segunda-feira, abril 26, 2004

resquícios na alma - V


A mulher fala alguma coisa e deve ser para mim, mas não entendo nada. Seria outra língua? Ela parece gostar de mim. Até assemelha-se a ti, Elvira. Não tão linda, não tão jovem, mas tem algum carisma que lembra teus olhos cintilando como pérolas negras.
Ela me pega pelo braço e me ergue devagar. Caminho, lentamente e atravesso a vastidão de meu cômodo. Não sei se dormi sentado ou se ainda estou dormindo. Queria poder voar daqui, para além do rio que a todo dia engole o sol.