terça-feira, agosto 31, 2004

curva do tempo - I


Aqui da janela se vê muita coisa. Tudo, lá embaixo, parece transcorrer muito rápido, mal consigo acompanhar com meus olhos. Pessoas, automóveis, todos com muita pressa. Por quê? Se o caminho é sempre o mesmo e as grandes alegrias sempre acontecendo só quando se pára?
Não tenho como nem vontade de explicar, mas à medida que melhor entendi o fluxo da vida, mais me detive nos lapsos de tempo. Percebi que quando amei, estava tranqüilo sobre um lençol macio, com a mulher amada. Quando minha filha nasceu, larguei tudo e vim contemplá-la. Enquanto escrevia, sentava sossegado e viajava a milhões de anos luz só no pensamento. Por que a pressa dessa gente, que corre de um lado a outro, sem saber onde vai dar?

segunda-feira, agosto 30, 2004

curva do tempo - II


A relatividade do tempo que Einstein tentou explicar, provavelmente, nem ele mesmo entendeu até que estivesse velho. De que adiantaria envelhecer mais rápido ou mais lentamente no espaço? Qual a probabilidade de alguém passar por idades diferentes às margens de um buraco negro? A maioria dos povos vive à margem da ciência e nem por isso o tempo lhes perdoa. Talvez o desconhecimento de sua ignorância seja mais prazeroso que a consciência do saber...
Pois daqui do alto, olhando o correr do mundo, me ocorre que mesmo moribundo, não tenho tempo a perder. Vou amar cada segundo que tiver Marília ao meu lado, mesmo sabendo que lhe tiro o tempo de viver o que já vivi. Egoísmo? Nunca tive tempo para isso.

domingo, agosto 29, 2004

curva do tempo - III


Pode ser que eu lhe seja um estorvo a essas alturas, mas o sorriso que ela me oferta me faz pensar que esses são nossos derradeiros momentos. Mesmo que me doa andar e que me faltem as palavras, sobra entendimento no olhar e nos pequenos gestos.
Nas vezes em que viajávamos juntos, eu e Marília fomos sempre cúmplices de aventuras e de descobrimentos. Elvira, paciente e conformada era feliz em nos ver assim, compartilhando olhares, de mãos dadas até mesmo depois de mulher feita. Ela entendia essa magia que nos ligava e nunca nos cobrou nada: éramos felizes e Elvira era parte disso, apesar de ser mais contemplativa.

sábado, agosto 28, 2004

curva do tempo - IV


Nos olhos de Marília, hoje encontro Elvira e só agora me dou conta de como sempre foram parecidas, apenas em idades diferentes. Posso então entender o grande amor que nos uniu, pois amei uma mulher que em sua infância deve ter sido uma Marília, cheia de energia e curiosidade. Marília era uma fórmula científica:
Tempo x Marília = Elvira.
De mim ele traz muito. A sintonia de pensamentos sempre foi marcante e todas as vezes que ela me ligava eu reconhecia sua presença no simples toque do telefone. E toda vez que meu peito apertou, ela estava precisando de mim. Por isso, sei que não lhe peso tanto, porque ela vê em mim uma parte que se vai, um sentinela de sua vida, que segue em frente descobrindo passagens ocultas no tempo e trazendo para o seu presente sinais que lhe indiquem o melhor caminho a seguir.

sexta-feira, agosto 27, 2004

curva do tempo - V


Lá embaixo, centenas de histórias seguem seus cursos, amores, traições, desejos, vaidade, amarguras, frustrações, dúvidas e falsas certezas. Daqui me sinto como um sábio sem discípulos que poderia ficar horas pregando sobre a vida e a importância de cada instante e cada cumplicidade que regem o conviver.
Hoje não haverá pôr do sol. A chuva bate na janela e embaça a visão. As pequenas gotas que se formam parecem como pequenos globos que contém o mundo, assim como cada indivíduo. As milhares de gotas na janela me lembram um céu estrelado, daqueles que só víamos em lugares distantes, no interior, onde as estrelas cadentes caem sem cerimônia, feito chuva de luz na imensidão profunda do céu.

quinta-feira, agosto 26, 2004

curva do tempo - VI


Não havia reparado em Marília, sentada na beira da cama a me observar. Ela fala alguma coisa bonita e eu concordo com a cabeça. Não sei o que ela disse, mas sinto que estou de acordo. A mesma magia de sempre. Ela já não é mais aquela menina, nem é mais a jovem exuberante que foi um dia, mas tem vida esfuziante atrás de seus olhos, posso sentir sua vibração sem ao menos pousar os meus nos dela.

quarta-feira, agosto 25, 2004

curva do tempo - VII


Sei que minha mente me trai muitas vezes. Esqueço pessoas, lembro de outras que nunca mais vi. Sinto-me viajando por lugares que nunca conheci, embora às vezes me sinta perdido dentro de casa, sem saber para que lado ir. Paciência... não tenho mais pressa. Até me divirto com pessoas que vêm me visitar sem que eu tenha a mínima idéia de quem sejam.

terça-feira, agosto 24, 2004

curva do tempo - VIII


Vou deitar-me. Marília estende a mão, como se lesse meus pensamentos. Trocamos sorrisos, ela me leva até o banheiro. Não sinto nenhum constrangimento de ser ajudado em tudo por ela. É como se fôssemos a extensão um de outro, como foi no início quando lhe mostrei o mundo.
Atrás da chuva, o sol se pôs. Mais um dia se foi e eu penso na noite que se aproxima. Quero sonhar com minha infância, quero entrar num livro de Monteiro Lobato ou quem sabe entender melhor o Gepeto num livro de Pinóquio.