quinta-feira, setembro 30, 2004

ciclo das águas - I


Olho o rio. Hoje, mais cedo, choveu. Agora o sol ilumina as poças na rua e brinda meus olhos cansados com a visão límpida de um dia que se finda claro e limpo. A mesma água que circulou pelo meu corpo todos esses anos, já estava aqui antes que eu chegasse e por aqui permanecerá... O ciclo das águas é maior que o ciclo da vida... A água, que desce de meus olhos evapora ao deitar-se sobre minhas mãos. E assim, de tantas lágrimas choradas por aí, vão juntando-se e formam nuvens de sentimentos, que precipitam-se pelos campos, alimentam as plantas, voltam a inundar os vales e juntar-se nos rios. Esse, que ora me contempla, já fez parte de mim, agora segue para o mar. Noutras paragens inundará casas, alimentará peixes e apaziguará sedes... Molhará corpos suados no outro lado do mundo.

quarta-feira, setembro 29, 2004

ciclo das águas - II


Por todos os lugares que essas águas vão fluir, um pouco de mim levará. É como se alcançasse outras terras que nunca pisei e nunca sentirei saudades. Poderá também molhar meus próprios passos em terras distantes, no tempo e no espaço.
Olhando esse rio, mergulho numa viagem e me vejo em Paris, ao lado de Cortázar, caminhando sobre as pontes do Sena, jogando uma flor em suas águas e chorando um amor fugidio. Vejo-me trilhando Barcelona ao lado de Marquez e perdendo-me nos labirintos de seus casarios e me encontrando no cais como um barco que chega para jamais voltar. E quando o sol encontra rio, enxergo Veríssimo levando-me pela mão por ladeiras de Porto Alegre a um pôr do sol grandioso e longo. Mário Quintana sorriria.

terça-feira, setembro 28, 2004

ciclo das águas - III


Não sei bem se estive em todos esses cantos, mas não me interessa mais. Estive nos livros e revirei o mundo, sem nunca descobrir o mundo que havia dentro de mim. Nesse anoitecer de minha vida, tanta coisa já deixou de ser importante que para mim só é infinito o que está escrito.

segunda-feira, setembro 27, 2004

ciclo das águas - IV


Se meu corpo me limita o passo, ultrapasso a linha e me encontro em fuga, nas velas de meus pensamentos. Minhas lembranças não são as fotos que coleciono, são meus neurônios que restam, concatenados ou não. Minha memória se diluiu em toda água que em mim fluiu e se dissolveu. Sim, sou como esse rio: por onde a água passa, trazendo sedimentos e se vai, levando pensamentos. Por onde estarei amanhã? Sob uma gôndola de Veneza ou inundando Bangladesh? Numa palafita na Índia ou no Central Park espiando Paul Auster? Quem sabe no cantil de um soldado numa dessas guerras infindáveis que devoram a Humanidade e secam qualquer esperança de paz?
Hoje vou deitar-me satisfeito! Recordei-me de lugares que provavelmente estive, de uma forma ou outra. Esse cansaço me fará dormir e sonhar. Ou estarei agora sonhando e posso a qualquer momento despertar?