Quando prá tudo já é tarde, a mente inquieta herda um corpo inerte, pendente de lembranças, oco de saudades e pleno de incertezas.
Até que ponto o ser humano quer viver, quando o tempo lhe chama para todos os lados?
quarta-feira, junho 30, 2004
avesso do espelho - I
Hoje reparei no espelho e não acreditei no que vi. Não eram minhas aquelas mãos, nem minha face poderia estar assim, vincada, caída, manchada, murcha e triste. Por dentro disso, que não era eu, me vi perdido e preso ao mirar meus olhos. Lá dentro, no fundo, estava eu prisioneiro do tempo, refém das horas e senhor de nada.
Sempre foi assim. Por dentro havia um fogo que vibrava e deixava torpe de meus próprios pensamentos, mas por fora uma pessoa sóbria e comedida. Uma explosão contida numa batisfera selada. Carreguei a vida toda uma chama que transcendia meus movimentos e queimava meus dedos, quando escrevia minhas crônicas e meus poemas. Olho minha mão marcada por manchas senis e me pergunto quando foi que tudo isso aconteceu. Não tenho resposta. Meu corpo não soube acompanhar minha juventude e agora já é um estorvo.
Já faz muito tempo que parei de escrever, antes mesmo que alguém pudesse ler. Até nisso fui contido e soube esconder muito bem cada palavra que germinou no papel por onde passei a caneta. Guardei bem, muito bem esse segredo. Quando Marília vendeu a casa de praia, não tive mais como pedir-lhe que olhasse no sótão o meu tesouro. Mas não faz mal. Escrevi para mim e fui feliz. Reconstruí momentos e recriei mundos em folhas brancas, que agora amareladas ou roídas por insetos vão acabar-se muito depois de mim, sem assinaturas e sem respostas.
Olho novamente o espelho e tenho vontade de rir. Por dentro dou gargalhadas, mas o pobre velho já não tem mais tempo para largos gestos e desvia o olhar de mim. Tenho que começar a voltar para meu quarto. Logo o sol se irá e não posso perder mais esse espetáculo. Mais um dia vitorioso em que derroto o sol. Ele se vai e eu fico a zombar de seu mergulho no horizonte.
Sílvio Vasconcellos, 31 anos, natural de São leopoldo, RS. Formação em....pela Universidade..., iinicia sua produção literária em ...., com seu primeiro poema (texto, conto, romance, etc...)