sábado, janeiro 31, 2004

ecos de luz - I

Como uma chama que se apaga, o sol se entrega ao rio, sem antes deixar de invadir cada retrato de minhas paredes. Enche de vermelho o espelho e delicadamente desbota mais um pouco de minhas lembranças. Do alto da janela, por trás da vidraça empoeirada, contemplo a imensidão se apagando sob os últimos raios de luz. No céu, as róseas nuvens me recordam algum lugar que vivi, alguém que já amei, me lembram tudo e nada. Envelhecer é um constante déjavous.

sexta-feira, janeiro 30, 2004

ecos de luz - II

Andar pelo quarto já não é tarefa fácil. Deslizar as mãos sobre a mobília, em busca de amparo, muitas vezes me castiga recordações. Perfumes, livros e porta-retratos já encontraram minha mão trêmula e se desintegraram no chão, misturando minhas sensações de aromas com palavras despregadas de páginas amareladas e fotos carcomidas pelo tempo.
Ao pé da cama, ainda me volto à janela para contemplar o último raio de sol, mas já é tarde. Foi-se. Como tudo, foi-se. Tento deitar-me, mas ainda há alguém dentro desse velho corpo querendo manter-se acordado. Dói. Buscar o velho livro no chão é um esforço audaz. Amparo-me no canto da cama e desço devagar. Meus joelhos, como se tivessem pregos de chumbo me suplicam descanso, mas a alma incansável é mais forte e precisa nutrir-se de poesia.

quinta-feira, janeiro 29, 2004

ecos de luz - III


Não sei quanto tempo estou aqui. Sempre olhei o sol se pôr desde que cheguei e sei que fiquei, algumas vezes, saudoso de sua luz em opacos dias de inverno, quando a névoa do rio apaga o horizonte. Sempre as mesmas caixas de remédios enfeitaram a cômoda e sei que os dias estão ficando mais curtos e a noite longa se aproxima. Também sei que a sombra de meus porta-retratos se estendem pelo chão até tocar-me na cama. Aí, sinto que não vou dormir sozinho, pois terei as minhas recordações a abraçarem-me pelos breves instantes que o sol permitir.

quarta-feira, janeiro 28, 2004

ecos de luz - IV


Levantar-me ainda é mais difícil, mas me ergo feliz pela conquista. Tenho em minhas mãos o mundo, os sonhos. Meus óculos. Meus óculos? Onde estão meus óculos? No outro lado do quarto, cintilam na luz do último clarão do dia. Vou buscá-lo. Como Júlio Cortázar, passo a passo. Primeiro ergo o pé direito, avanço alguns centímetros e descanso este pé, enquanto ergo o que ficou para trás, transferindo o equilíbrio para o direito, até que o esquerdo ultrapasse lentamente o pé de apoio e vá pôr-se a frente, recebendo por sua vez o peso de meus anos. Repito isso pausadamente por cinco vezes. Cinco minutos. Andar requer pensar, concatenar movimentos e desejos. Há muitos anos não usava essas palavras juntas. Só, sou obrigado a sorrir, apesar do esforço.

terça-feira, janeiro 27, 2004

ecos de luz - V


Não vou voltar para a cama. Estou declarando minha revolta contra ela, que como um canto de sereia me busca para nunca mais me deixar sair. Vou ficar aqui nesta poltrona. Tenho luz, tenho meu livro e tenho meus óculos. Basta.
Sem bater, sem pedir licença a mulher entra no quarto. De novo ela. Me sorri. De onde a conheço? Ela fala alto, fecha a janela e finjo não vê-la. Me oferece água, não quero. Me sorri, não ligo. Sai sem despedir-se, a mal educada. Aquela janela fechada de novo me esconde as últimas sombras de mais um dia, que passa lento, muito lento, cheio de dores, vazio de sabores. Insípidas horas, longe no tempo.

segunda-feira, janeiro 26, 2004

ecos de luz - VI


Ela volta, agora com um prato de sopa. Não vou recusar, afinal a caminhada de hoje me deixou exausto. Este quarto parece maior a cada dia. Boa. Tem gosto de... é boa. Depois de experimentar tudo e tantas vezes, agora já não consigo diferenciar batata de cenoura. Está quente, mas não tenho pressa. Essa mulher é gentil, mas como não a conheço, é melhor não paparicar-lhe com elogios. Ela pode entender como um galanteio e hoje não estou disposto a aventuras. Termino a sopa, ela me limpa o rosto, delicadamente e me estende a mão para ir até a cama. Queria dizer-lhe que gostaria de escovar meus dentes, mas as palavras hoje ficaram só nos livros e se recusaram a descer de meus olhos até minha língua. Resignado, deixo-a ajudar-me a deitar. Ela sorri. Por quê?
Lá estou eu de novo na cama, longe de meu livro, de meus óculos, janela fechada, dentes sujos, querendo urinar e ela apaga a luz.