sexta-feira, março 31, 2006

dois pássaros


Muito pouco diferia um dia do outro, porém papai tudo observava. Confesso que ficava em dúvida se ele reconhecia o lugar,ou se identificava suas coisas, ou até mesmo se tinha noção do que se passava.. seria ele um relógio travado que dá sempre a mesma hora? Mais parecia um passarinho numa gaiola, que por mais paisagens que lhe mostrasse, continuava confinado.
Logo após sua chegada lá em casa, por uma fresta entrou um pássaro, que parecia estar procurando-o. Minha neta assustou-se com bichinho, que também surpreendeu-se com ela. Quando fomos ver o que havia acontecido, meu pai, ainda suficientemente forte para andar lentamente, havia se erguido da cama para socorrer o pássaro que havia tentado sair pelo vidro. Foi comovente vê-lo com o animalzinho em sua mão. Meu filho, que costumava freqüentar nossa casa quase que diariamente, minha neta e eu sentamos a seu lado e compartilhamos um momento de meia lucidez. Eram dois pássaros feridos, e todos nós atordoados pelo instante inusitado, feito refém das horas.

quinta-feira, março 30, 2006

bolor do tempo

Nos primeiros tempos, não imaginava a distância que teríamos, dada a proximidade que passamos a ter.
Lembro certa vez, com minha neta no colo, abracei papai enquanto mirávamos a mesma janela. Lado a lado, porém descompassados no tempo. Eu procurava no rio aqui próximo o ponto que ele contemplava, o raio de luz que ele buscava, tentando compreender a magnitude daquela alma que tanto me trouxe e tanto significa na minha história, no meu modo de agir e até mesmo na forma que criei meu filho, longe de um pai, enquanto eu o tinha sempre tão perto.
As lembranças da infância, as cantigas de roda que ele me ensinou e que eu cantarolava para minha neta, o saborear de novas frutas, tudo voltou a minha mente como se recém tivesse provado um morango mofado pelo bolor do tempo. No quê estaria ele pensando?... Sempre tivéramos tanta sintonia, mas o que havia naquele dia era uma ponte inacabada que me arremeçava a águas turvas, tão diferentes dessas que majestosamente se espalhavam no horizonte.
Porto Alegre ao entardecer de frente ao rio era como mirar o próprio destino, esvaindo-se pelas nesgas de sol que flutuavam naquela superfície. A beleza de uma natureza exuberante em contraponto ao que ela mesma nos faz cumprir – um fim melancólico para uma vida de energia de um pai vivaz e carinhoso, que agora mal me olhava. Dei-lhe meu afeto envolvendo-lhe os ombros e cheguei a pensar que ele estava me reconhecendo. O que havia ao certo era o sol mais uma vez se pondo e depois... a escuridão.
Enquanto lhe cantava as velhas canções infantis, Helena, minha neta, lhe acariciava o cabelo e ele nem percebia, aflito que estava diante do sol a apagar-se.



quarta-feira, março 29, 2006

luz na janela

A figura de papai sempre foi meu esteio, onde levava minhas dúvidas, onde descobria minhas respostas. Ele nunca me dizia como agir, mas me permitia ver as verdades e decidir o caminho a tomar. As coisas começaram a mudar desde o outono de 2001...
Quando meu pai chegou do hospital, logo após seu primeiro derrame cerebral, tive que fazer algumas adaptações. O quarto de meu filho, que já não o ocupava mais, sofreu alguns pequenos rearranjos. Troquei os posters de adolescente que ele havia deixado quando se fora, por porta-retratos antigos, retratos de família que fomos acumulando por anos e transformei tudo num pequeno museu, na esperança de fazê-lo lembrar de como fomos felizes. Trouxe também alguns objetos de valor pessoal que meu pai ainda guardava em seu apartamento, próximo ao meu. Um abajur, um vaso, todos os livros, até a cortina na janela que dava para o pôr-do-sol era a mesma que ele tinha.
Não sabia por quanto tempo estaria comigo, mas sabia que dentro daquele quarto havia uma vida inteira, um eco de luz sobre a vida. Não foi fácil confrontar-me com o futuro que se extinguia perante mim...


terça-feira, março 28, 2006

Marília


Sim, eu existo.
Meu nome é Marília, tenho cinquenta e seis anos e por três anos e meio cuidei de meu pai, até seus oitenta e sete anos.
Se deu trabalho? Claro que sim, mas ele tinha muito crédito comigo. Foram anos maravilhosos que vi um homem e vi um mundo ao seu redor.
No início, não sabia por quanto tempo vou poderia cuidá-lo. A vida lhe pesava e eu não era mais uma menina.
Nos pensamentos atribulados que ele mostrava, misturava ternura e desespero de quem um dia estava lúcido e noutro nem sabia onde se encontrava, muito menos me reconhecia. A fala perdera logo e me restavam seus olhos, seu sorriso abstraído de movimentos mínimos.
Mesmo que passasse dias sem me reconhecer, aproveitava para saborear seus gestos que nunca faltavam. Quando ele estava em seus momentos de lucidez saboreamos álbuns e lembranças, urgentes do tempo que nos restava.