sexta-feira, abril 28, 2006

no fundo de seus olhos

Logo após o segundo derrame, no final do segundo ano de meu pai comigo, tive que forrar a cama. A incontinência urinária, no caso dele, não era constante. Era como uma criança que tinha um sonho e quando via, já era tarde. Assim, evitei maiores problemas e sendo casos isolados, não pus fraldões. Não lhe restava muito tempo, eu sabia. Não queria que ele se sentisse desconfortável.
Enquanto lhe trocava a roupa, lembrava de minha primeira lembrança... Lá estava ele, comigo pela mão a olhar o mar, contemplando o ciclo das águas. Concluí de como era incrível que, para as pessoas que amamos e convivemos, não conseguimos distinguir a idade em suas fisionomias. Meu pai sempre havia sido aquele, magro, estatura mediana, cabelos pretos que lhe emolduraram seu rosto branco e sorridente. No final, lhe faltaram cabelos e os que restaram eram brancos feito geada, como quando quebrávamos o gelo em poças d´água a caminho da escola. Talvez até sua altura não fosse a mesma, mas no fundo de seus olhos, sempre lá esteve a me sorrir.

quarta-feira, abril 26, 2006

lágrimas abandonadas


Na tarde em que Helena, minha neta, encontrou meu pai no chão, foi um susto muito grande. Ele estava lá, com seus olhos brilhantes e em súplica a mirar-nos. Seus passos poderiam ter sido os últimos, pois naquele instante ele estava sofrendo o segundo derrame. As esperanças de vê-lo saudável, voltando a conversar conosco, contando tantas coisas, novas ou recontadas, poderiam estar morrendo naquele piso de madeira, onde meu pai agora derramava uma lágrima que descia de seu rosto entre os vincos de sua idade e repousava no chão. Lá esvaiu-se um pouco do brilho de seus olhos. Nada além... . Era a catarse que eu relutava finalmente apoderando-se do tempo. Dava-me conta da finitude que se aproximava irremediavelmente.

segunda-feira, abril 24, 2006

baú de espelhos

Há três anos atrás, logo que meu pai adoeceu, tive que vender nossa casa de praia, onde ele ficava bastante tempo sozinho com suas lembranças. Era um lugar especial, onde as memórias do trabalho ficavam longe e ele me contava de sua infância, de seus irmãos, de como conhecera minha mãe, de meu nascimento, minha vida toda. Ele já estava doente, havia tido seu primeiro infarto, mas ainda pude ainda falar-lhe da venda do imóvel e da necessidade que tínhamos de manter o tratamento para que ele se restabelecesse e de quanto já não seria mais útil a casa. Assim que a vendemos, no entanto, ele sofreu o derrame e não soube do meu achado. Meu pai, que me surpreendia em palavras, agora me mostrava um lado que não conhecia, o avesso de seu espelho: meu pai visto de dentro. Por anos, na casa de praia, sozinho, ele escrevera muito. Crônicas, recordações, poesias, discursos, os mais variados escritos, guardados num baú no sótão, que me rendeu quase um mês de lágrimas e sorrisos ao lê-los.

quinta-feira, abril 20, 2006

rio, sol e nostalgia

Em muitas manhãs, sentei meu pai junto ao jardim do condomínio, de onde ele poderia ver o rio ao longe. Sabia que ele gostava daquele lugar e ali ficávamos sob os raios de sol. Era fácil contentá-lo com livros que lhe deixava à mão. Ele olhava para os livros como se lembrasse mais deles que de mim. Não sei se conseguia ler alguma coisa ou se ficava apenas folhando com as dificuldades de seus gestos, mas eu me sentia bem ao vê-lo à vontade.
Perto dali, havia um caramanchão de Madressilvas que permeava de seu doce perfume todo lugar, principalmente com a brisa de fim de tarde. Nostalgia indecifrável, jardim suspenso no tempo... Talvez ele pudesse me lembrar do quê, mas não poderia me contar. Eram retratos que enchiam minha alma de recordações que não eram minhas.
De quê é feita a memória? O que restará a mim lembrar? A forma como ele suspirava perante os livros, perante a tarde, feita de sol e rio, me dava a nítida impressão de que ele vivenciara momentos que trouxera com ele, não importando mais quando fora. Fico feliz em ter presenciado esses reencontros, mesmo que não pudesse testemunhá-los.

terça-feira, abril 18, 2006

migalhas e espinhos

Por vezes, quando eu ia vê-lo o encontrava mais distante, como se estivesse na companhia de alguma outra pessoa, como se houvessem resquícios em sua alma de pessoas que nem eu mesma conheci. Meus tios que já se foram, minha mãe que lhe era tudo e tantas outras pessoas que compartilharam sua passagem...
Sentia que o incomodava por ter que constantemente tratá-lo, seja alimentado-o, medicando-o ou até mesmo ajudando-o na higiene pessoal. Seus gestos me faziam lembrar de minha adolescência, quando eu queria ficar só e ele insistia que eu fosse olhar um gafanhoto verde ou me apresentava um livro infantil que já não me interessava...
Não tivemos grandes diferenças nessa fase... Passados os primeiros tempos de meu adolescer e com a ajuda de minha mãe ele foi adaptando-se a jovem mulher que por tantos anos lhe acompanharia. Meu pai aproveitou melhor de mim que eu mesma e eu lhe retribuí tirando-o de seus devaneios para pô-lo na cama, sem que ele se recordasse de mim, como se eu estivesse interferindo em seus sonhos, em suas viagens pelo tempo, onde provavelmente encontrava com pessoas que nem eu supunha.

segunda-feira, abril 17, 2006

só há sombra onde há luz

Em algumas ocasiões, ele estava realmente distante e assim me tratava. Mas eu não me importava.. Já havíamos tido tantos momentos intensos, que só uma filha amada poderia lembrar. Aqueles olhos de indiferença e, talvez, um pouco de apreensão, não desmanchavam o encantamento de estar junto dele.
Naqueles três anos que estivemos numa presença ausente, havia flashes de memórias, ecos de luz em que ele me surpreendia. Uma foto que víssemos juntos nos remetia sem palavras a passeios que tivemos, brincadeiras num parque qualquer, passeios pela areia e às lembranças de minha mãe que se foi tão cedo. Quando eu esperava uma palavra, um sorriso, ele desligava-se e voltava para dentro de si. E nesse ir e vir, eu assistia sua despedida, seus hiatos mentais, mas sua constância de espírito. Ele não me enganava... via, no fundo de seu olho o mesmo brilho que iluminou minha infância, me conduziu na adolescência, que nutriu de sabedoria meus passos ao longo dessa estrada que compartilhamos com tanto amor.

quarta-feira, abril 12, 2006

do outro lado do abismo

Para resgatar papai, usei de artifícios de memória que volta e meia funcionaram. Parar ao lado dele com uma roupa antiga, mostrar álbuns de fotografia, e conversar, conversar, conversar como se ele entendesse tudo o que eu dizia. Tinha vezes que eu sabia que me reconhecia, embora duvidasse que me entendesse. Em outras, ele me olhava desconfiado, como se eu fosse uma estranha invasora de suas lembranças. Houve momentos que ele dava uma risada, como aquelas de antigamente, quando nos contava uma piada nova ou relatava algo pitoresco que se sucedera na universidade. Por onde vagaria sua memória?
Tentava provocar uma curva no tempo ao falar-lhe sobre minhas recordações, mas ele se distraía olhando pela janela e via então que essas lembranças eram minhas, não as dele. Estendia-lhe a mão e ele a apertava. Levava-o até o banheiro e ele me sorria. Me via menina recebendo um elogio, uma aprovação, um carinho.
Apesar de sempre sorrir-lhe, queria poder ter dito como estava triste por estar tão próxima dele e, ao mesmo tempo, distante como se estivéssemos cada um em lados opostos ao abismo...

segunda-feira, abril 10, 2006

um mar na garganta

Ainda no primeiro ano, as coisas pareciam tornarem-se repetitivas e não conseguia criar novas situações que lhe possibilitassem retomar sua memória. Optei então, por tirar-lhe de casa, sair em busca de outras recordações que não fossem álbuns e conversas.
No dia de seu aniversário, não adiantaria comprar-lhe um presente. Coloquei-o no carro com bastante dificuldade, andamos duas horas em silêncio de automóvel para levá-lo até o mar. O oceano sempre foi essencial para nós. Juntos com mamãe, conhecemos praias distantes, por estradas antigas que nos tomavam horas e horas de viagem. No caminho, a expectativa de ver o mar, de sentir o cheiro da maresia, de molhar meus pés e tontear perante o repuxo. Com meu pai me guiando e minha mãe na outra mão, sentia o equilíbrio naqueles dias de infância, quando nada era mais seguro que o calor de sua mão. Naquele dia, ao ampará-lo pela areia, levei-o até onde ele me ensinou a olhar à frente para não cair. Seu sorriso voltou e eu chorei. Não sei se ele lembrou de alguma coisa de nossa vida, mas com certeza foi o melhor presente que já lhe dei. A chuva que começou a cair confundiram minhas lágrimas de felicidade, enquanto ele olhava para cima e se deixava molhar em seu sorriso infantil perante aquele mar de saudades.

quarta-feira, abril 05, 2006

a sombra das letras

Eu sentava em frente a papai, alimentado-o com sopas e caldos e viajava no tempo e nas recordações de tudo que dele herdei por seus exemplos, dos costumes que adquiri, dos conceitos que se estabeleceram na minha vida através de seus gestos.
A proximidade aos livros, obtive de papai. Foram anos como professor de literatura e curador da biblioteca pública do estado, status que nunca lhe rendeu muito financeiramente. Além de uma vida modesta convivemos sempre num ar de cultura em minha casa. Ele falava de seu trabalho com tanto prazer, dos novos achados literários, dos velhos relidos e reinterpretados, de como os seus alunos lhe faziam descobrir novas nuances. Tudo isso acabou por me fazer optar por também trabalhar nessa área, como tradutora. Era capaz de contar sobre lugares que nunca havia estado fisicamente, mas que mergulhara em suas leituras.
Nas paredes de casa, não havia lugar para o vazio, eram estantes que as decoravam. Será que ele lembrava disso? Será que os livros fizeram parte de sua memória? Nunca saberei. Terei que envelhecer para saber e poder contar, feito náufrago nesse oceano de lembranças onde flutuo nos restos de minhas recordações.

segunda-feira, abril 03, 2006

outonos cinzentos


Meu pai viveu a plenitude dos ideais de cada tempo. Era ainda professor quando lutou contra duas ditaduras, apoiou revolucionários que se esconderam em nossa casa durante os anos sessenta e por pouco não acabou torturado nos bastidores daquela insanidade. Minha mãe, sempre com presença de espírito soube sempre o momento certo para proteger a família da leviandade dos tempos. A contra-gosto, mas com respeito, ele a ouvia e assim sobrevivemos com nossos sonhos contidos de liberdade. Já não tão jovem, no final dos anos setenta, quase aposentado como professor universitário organizou movimentos sociais como se fosse um menino. Mamãe já havia partido e não teve quem o segurasse. Depois que veio para minha casa, custou-me aceitar seu silêncio, pois de seus olhos ecoavam gritos mudos, diferentes daqueles que eu ouvia de meu quarto em noites cinzentas de outonos perdidos de liberdades.