quarta-feira, março 31, 2004

mar de saudades - I


Sopa, de novo. Queria batatas fritas, bife acebolado, ovo frito. Sopa. Por que só me dão sopa. Sal. Cadê o sal?
Não sei quando tudo aconteceu, ou quando tudo parou de acontecer. Passei a ser um sobrevivente de uma guerra que não perdi. Não teve um dia definitivo, uma data que me dissessem: Chega! Foi indo. Um dia me acordei nesse quarto, como se nunca tivesse vivido noutro local. Minhas memórias fixadas em paredes e estantes, meus sonhos pregados em corredores de memórias sem data.

terça-feira, março 30, 2004

mar de saudades - II


Sei que ela está sempre por perto, às vezes se esquece de alguma coisa. Não sei mais o seu nome, mas meus dentes, por favor, é ultrajante! Mas é doce, sorri, afaga.
Outro dia me levou até um automóvel, me sentou no banco dianteiro e me amparou até o mar. Lá estava ele. Idêntico. Superior. Imponente. O som que emanava de seus movimentos rítmicos me convidaram a andar na areia. A mulher hesitou, mas entendeu meu olhar, meu anseio. Andamos por quinze minutos. Melhor dizer assim que referir-me aos dez sofridos passos que abençoaram meus pés com areia e sal. Na verdade eu queria entrar mar a dentro, como uma criança que fura as ondas incansavelmente.

segunda-feira, março 29, 2004

mar de saudades - III


Foi um belo dia, aquele. Choveu no fim da tarde, mas era como se a Natureza resolvesse fazer uma faxina geral nas suas obras primas e tudo ficou cristalino e renovado. A mulher, simpática, sempre me mimando. Não lhe dei muita confiança. Hoje em dia, nunca se sabe. Todavia lhe agradeci mesmo assim, porque me deixou molhar-me na chuva, como um menino. Ela me lembra alguém... E lá estava eu, sorrindo, olhando para o céu, vendo aquelas gotas se aproximarem de minha pele rija e me refrescarem do sol daquela tarde inesquecível.

domingo, março 28, 2004

mar de saudades - IV


Será que morri? Será ela um anjo que veio me mostrar tudo o que vou perder por não ter me comportado muito bem? Se for, não é nada parecido com o que deve ser um anjo. Asas, a pobrezinha, não tem. Auréola? Não, mas tem algo que brilha ao seu redor, indescritível. Pode ser... Um anjo sorridente... Me leva prá lá e prá cá, me põe na areia, no sol, no mar e agora na chuva. Abençoada.

sábado, março 27, 2004

mar de saudades - V


Mas aqui estou eu, diante de minha sopa. Há dias de sol e há dias de sopa. A vida inteira foi assim. Não quero mais, obrigado. Esse restaurante tem um serviço muito bom, mas como são insistentes!
De volta ao meu reino, meu quarto, minha estante. Ainda há tempo para ver o sol. A mulher me deixa só e fico sentado em minha poltrona, reparando na chama eterna que vai afundar em alguns instantes no rio. Como a vida humana, é inexorável. O dia vai acabar, virá a noite. Antes que aquela mulher volte aqui e veja minha última lágrima de saudades se pondo no rio, quero encontrar um livro especial. Sempre há um livro especial para mim. Normalmente é o que estou lendo, mesmo que esses amontoados de letras não mais se entendam.

sexta-feira, março 26, 2004

mar de saudades - VI


Hã? O que houve? Ai, ai, minhas costas... Não tenho idade para dormir em poltronas. Onde está aquela mulher? Mas ainda está claro lá fora. Não consigo mais definir tempo. Quanto é muito tempo? Quanto dormi? Quanto vivi? Quando comecei a morrer?
Ela entra, sem bater novamente. Eu lhe mostro os dentes e ela sorri. Os dentes! Não quero ver os seus! Leva-me ao banheiro, baixa minhas calças. Que sorte, pelo menos isso ela ainda lembra. Não me sinto mal por ela me servir dessa maneira. Vejo que há um sorriso, uma satisfação. Tento retribuir, mas devo estar com um hálito insuportável. Ela... não credito! Ela me oferece a escova de dentes. Ainda vou me lembrar com quem ela se parece.